O IMPACTO DA LINGUAGEM DOS QUADRINHOS NO ENSINO DE CIÊNCIAS
Este tópico tem a intencionalidade de divulgar o trabalho de Adriana Araújo Dutra Rodrigues em meio ao desenvolvimento da dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais como exigência para a obtenção do título de Mestre em Educação intitulado O IMPACTO DA LINGUAGEM DOS QUADRINHOS NO ENSINO DE CIÊNCIAS e orientado por Ana Luiza de Quadros.
De acordo Adriana Araújo Dutra Rodrigues "propor atividades em sala de aula que engajem os estudantes com a ciência e com a leitura sobre Ciências tem sido um desafio constante para professores dessa área. No entanto, esses mesmos jovens parecem apreciar quadrinhos e dedicam tempo a essa leitura. Evidência disso é o grande número de publicações do gênero, que surgem como um meio no qual o visual e o literário se tocam, ganhando novas nuances e uma nova forma de expressão. A presente pesquisa foi desenvolvida com o objetivo principal de analisar o impacto dos quadrinhos no ensino de conceitos químicos, ou seja, se uma história em quadrinhos predispõe o aluno ao aprendizado de conceitos e se a linguagem presente na história em quadrinhos permeia o ensino, a ponto de ser relembrada mais tarde, em um contexto avaliativo. Para isso utilizamos a pesquisa qualitativa como método e nos baseamos na literatura sobre linguagem narrativa desenvolvida por Bruner. Selecionamos uma turma de primeiro ano do Ensino Médio de uma escola pública de Belo Horizonte, para essa investigação. Uma história em quadrinhos (HQ) envolvendo o conceito de densidade foi produzida e usada em três momentos diferentes do trabalho. No primeiro os alunos leram a HQ e foram convidados a recontá-la e a resolver uma situação problema semelhante, embora conservasse diferenças em relação à situação vivida pelos personagens da HQ. Três semanas após o desenvolvimento dessa aula, os alunos fizeram uma avaliação escrita que continha uma situação-problema que remetia ao conceito presente na HQ. Cerca de três meses após do desenvolvimento da HQ, foi feita uma atividade de retomada da situação-problema, como introdução às aulas sobre o modelo cinético-molecular. As aulas nas quais essas atividades aconteceram foram gravadas em vídeo e analisadas. Percebemos que a solução presente na HQ foi constantemente retomada pelos alunos em diferentes momentos dessa investigação. O fato de tantas vezes se remeterem a mesma solução usada na HQ pode ser atribuído à natureza narrativa das HQs, que as aproxima da linguagem comum das interações humanas. Apenas quando a resolução proposta para a situação problema foi problematizada pela pesquisadora/professora, parte considerável dos estudantes foi capaz de adaptar o procedimento para o contexto da nova situação problema. Entendemos que as HQs representam uma oportunidade de auxiliar os alunos na criação de uma narrativa interior que acomode melhor esses conceitos, facilitando a compreensão e a memória."
Texto extraído de: repositorio ufmg
Trecho de história em quadrinhos produzido no panorama de pesquisa
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Trecho da história em quadrinhos - Propriedade da matéria: Densidade - extraído de: repositorio ufmg |
História em quadrinhos produzida para a dissertação - extraída de: bramevlad
Conclusões da autora
"Desenvolvemos esse trabalho com o objetivo de analisar o impacto de uma história em quadrinhos para a apropriação de um conceito científico, tanto a curto quanto a médio prazo. A pesquisa se constituiu na análise de três aulas: o desenvolvimento da HQ e de uma situação problema, uma prova escrita feita três semanas depois dessa primeira aula, contendo uma nova situação problema e uma aula onde a situação problema da prova escrita foi retomada em uma atividade em grupo. Essa última aconteceu aproximadamente três meses após o uso da HQ.Na HQ desenvolvida, a exposição de um procedimento que utiliza a densidade para se descobrir o material de que um objeto é feito não é uma exposição sem bases na realidade, mas o clímax da resolução de um problema que estava ameaçando um dos personagens. Esse clímax torna-se marcante por ser a culminância de um processo realizado ao longo de toda a narrativa.
Durante a primeira etapa da pesquisa – a apresentação da HQ aos alunos e a discussão da solução-problema – o primeiro indício de que a leitura estava contribuindo para um interesse maior dos alunos foi uma grande participação dos estudantes (15 dos 25 participantes da aula ofereceram comentários), o que é um comportamento pouco comum para a turma investigada. Entre os estudantes geralmente pouco participativos, destacamos o Estudante P, que normalmente não se interessava pelas atividades de classe, mas foi extremamente ativo em todas as etapas do trabalho. Esse estudante, assim como vários outros, se engajaram na discussão e na busca de uma solução para os problemas propostos. Nos dois momentos da pesquisa, posteriores à leitura da HQ e discussão da solução-problema relacionada, alunos relembravam os elementos-chave da história e foram capazes de articular corretamente esses elementos entre si. Quanto a apropriação do conceito de densidade, observamos que, na prova escrita, 20 dos 25 estudantes utilizaram o conceito de densidade para resolver o problema apresentado, ainda que nem todas as soluções atendessem à exigência de que os materiais usados tinham que ser comuns em um laboratório escolar ou de não destruição da estátua. Na atividade em grupos para a retomada da prova, quando a professora desafiou os alunos a darem uma resposta que atendesse a todas as demandas do problema proposto durante a prova, três grupos de alunos foram capazes de usar adequadamente o conceito de densidade. Dois outros grupos, ao construir suas respostas, se remeteram novamente à história em quadrinhos, indicando que essa história estava em suas memórias e que eles foram capazes de recrutar o que lhes era mais apropriado e emocionalmente vívido, como leitor, no repertório da HQ lida em sala de aula. Apenas um grupo não ofereceu uma solução estruturada, oferecendo vários procedimentos no que pareceu ser um processo de tentativa e erro.
De uma maneira geral, pudemos perceber que durante todas as etapas da pesquisa, os alunos espontaneamente se remeteram à solução proposta pelos personagens da história, sempre que se deparavam com um problema semelhante. E isso aconteceu tanto na primeira situação problema proposta no dia da leitura da HQ quanto três meses depois, durante a retomada da questão problema presente na atividade avaliativa. O fato de que a HQ ficou presente na memória desses alunos pode ser atribuído à natureza narrativa das HQs, que as aproxima da linguagem comum das interações humanas. Além disso, há a possibilidade de que os próprios elementos da narrativa podem levar esse aluno a prestar mais atenção a elementos-chave de um problema, investindo-os de valor emocional e, portanto, retendo-os de forma mais duradoura na memória (BRUNER, 2002). Portanto, novamente argumentamos que a história em quadrinhos não representou, para esse grupo de alunos, simplesmente um meio mais atrativo de inserir os conceitos científicos, mas uma oportunidade de auxiliar na criação de uma narrativa interior, que parece ter auxiliado na acomodação desses conceitos. Embora as propostas iniciais de resolução de um problema fossem construídas com elementos presentes na HQ e que não estavam disponíveis no mundo real (laboratório da escola), ao serem questionados sobre isso os alunos foram, aos poucos, se apropriando de um novo modo de pensar essa solução. Ao que nos parece, a HQ facilitou a memória de um procedimento usado pelos personagens e auxiliou na construção de um novo procedimento, para a maior parte dos alunos.
Consideramos que a história em quadrinhos lida pelos alunos foi uma atividade lúdica que trouxe elementos que se mantiveram presentes durante todo o processo da pesquisa. Isso nos leva a crer que as HQs são instrumentos eficazes para auxiliar na aprendizagem, engajando os alunos na discussão de um conceito e ajudando-os a fazer relações desse conceito com um contexto que, embora guarde algumas semelhanças, traz diferenças significativas.
Em todos os trabalhos envolvendo HQ no ensino de Ciências apresentados nos eventos analisados e presentes nos anais desses eventos foram encontrados resultados positivos em termos de aprendizagem quando as HQs eram usadas para trabalhar temas científicos com os alunos. Pelos dados encontrados em nosso trabalho, sabemos que o entendimento de um conceito exige bem mais que uma HQ. É preciso que o professor use de estratégias específicas para que os estudantes percebam a relação dos conceitos científicos tanto com a história narrada quando com o contexto.
Baseados nesses trabalhos, observamos que alguns professores acabam recorrendo a HQs comerciais, como os quadrinhos Disney ou da Turma da Mônica, para discutir algum fenômeno químico que esteja presente nessas HQ. Isso geralmente ocorre por elas serem mais abundantes e estarem disponíveis ao público em geral, quando comparados a quadrinhos didáticos/paradidáticos e por serem populares entre os alunos, e nem todos os professores possuem as ferramentas para criarem as próprias histórias.
Nesse caso, recomendamos que o professor se certifique de que o conceito que ele quer abordar esteja apresentado de forma correta. Dessa forma, ficam reduzidos os riscos de que o aluno recorde com mais intensidade a história conceitualmente errada, ao invés da discussão feita posteriormente para corrigi-la. Também recomendamos que o conceito seja fundamental à trama da história, ao invés de um detalhe que os alunos possam não reparar em uma primeira leitura, ou podem não se recordar desse conceito mais tarde, ao recordar a história. Não devemos nos esquecer de que o que não estiver estruturado narrativamente sofrerá perdas na armazenagem da memória (BRUNER, 2002b).
Mesmo nos casos em que os quadrinhos eram montados pelos pesquisadores especialmente para fins o ensino, a maioria deixa claro que sua intenção era a de usar os quadrinhos como maneira de fomentar uma discussão. Nesse sentido entendemos que outras estratégias estavam sendo usadas além da leitura da HQ. Pela leitura dos resultados desses trabalhos, não foi enfatizado o papel das HQs em si, ficando claro que o trabalho como um todo (HQ + discussão) foi positivo. É importante ressaltar que, por se tratarem de resumos apresentados em eventos, não é possível ter uma visão abrangente da pesquisa que cada autor estava desenvolvendo ou o que representou essa discussão. É provável que os pesquisadores já tenham claro a necessidade de associar a leitura das HQs com outras estratégias.
A primeira questão que intencionávamos responder com esse trabalho refere-se ao impacto dos quadrinhos para o ensino de conceitos da Química. Entendemos, agora, que esse impacto foi significativo. Ficou visível que os estudantes se apegaram a elementos que foram investidos de forte valor sentimental na história, e esses elementos eram justamente aqueles que ajudariam os estudantes a compreenderem o procedimento experimental e o conceito de densidade (como as moedas de ouro, por exemplo). Se a história não dispensasse carga emocional a esses elementos, os estudantes poderiam não os relembrar mais tarde, não alcançando o mesmo nível de impacto em aulas subsequentes. O desafio trazido por esse apego aos elementos marcantes está no fato de que, caso os estudantes não sejam capazes de articular seus próprios recursos para construir sua solução para o problema, eles terminarão resgatando o que lembraram da história ao invés de buscar transcender esses elementos.
A segunda questão referia-se a contribuição desse impacto na aprendizagem de conceitos. Vimos que três grupos de alunos foram capazes – cada um em seu tempo – de usar o conceito adequadamente na resolução da situação problema. Isso representa 56% dos alunos investigados, em uma turma que tradicionalmente não vinha apresentando um bom desempenho na maior parte das disciplinas que faziam parte do currículo da série que frequentavam. Eles entraram em contato com o conceito de densidade durante a leitura da HQ e foram capazes de usar esse conceito em outra situação-problema, o que representa bem mais que uma memorização. Portanto, a nosso ver, há uma contribuição significativa na aprendizagem.
Na terceira questão tínhamos a intenção de verificar se os elementos presentes na HQ seriam relembrados em atividade posterior, pelos alunos. Para essa questão podemos afirmar categoricamente que sim. Esse grupo investigado recorreu inúmeras vezes aos elementos presentes na HQ, para tentar encontrar uma solução adequada para a situação problema proposta na prova e que foi problematizada praticamente três meses depois. A partir da experiência vivida, fica mais claro o impacto que as HQs propriamente ditas têm no ensino de Ciências. Esperamos que esse conhecimento facilite a análise dos materiais em quadrinhos que sejam apresentados aos alunos, mostrando que as vantagens e desvantagens de um quadrinho vão muito além da trama da história, do interesse que geram e da arte dos mesmos. Acreditamos que todos os quadrinistas interessados em contribuir com o ensino de Ciências poderão utilizar os resultados apresentados aqui para a criação de materiais cada vez mais adequados a esse objetivo, inclusive a autora da HQ em questão. Temos clara, porém, a necessidade de ampliar essa pesquisa, aprofundando a respeito de narrativas a serem usados em sala de aula, dos elementos que devem ou não figurar nelas e sobre o alcance do texto e da imagem em uma HQ, por exemplo.
Com isso, somos favoráveis ao uso de HQs em aulas de Ciências, já que a HQ utilizada se mostrou como uma aliada ao trabalho docente, principalmente por ter engajado os estudantes nas aulas e na discussão de situações problemas que envolviam conceitos químicos. Sabemos, no entanto, que alguns cuidados devem ser tomados ao selecionar a história e a atividades a serem desenvolvidas pelo professor para transformar uma história “fictícia” em ferramenta de aprendizagem em sala de aula. Temos a expectativa que, no futuro, a mídia dos quadrinhos seja aperfeiçoada para ter uma presença maior nas aulas de ciências, contribuindo não só com o interesse e a motivação dos alunos quanto ao assunto tratado, mas com o processo de aprendizagem em si."
Texto extraído de: repositorio ufmg