"As Histórias em Quadrinhos apresentam uma série de características potencialmente utilizáveis no ambiente educacional. Do ponto de vista geral, estamos trabalhando com um meio de comunicação de massa, um material familiar ao aluno, escrito obrigatoriamente de forma acessível e popular que, com sua linguagem universal, vem há mais de um século informando seus leitores. Do ponto de vista didático, as HQ podem ser classificadas de acordo com sua função pedagógica predominante, permitindo-nos verificar a existência, dependendo do contexto de sua utilização, de Quadrinhos que visam a uma ilustração bem-humorada do fenômeno físico (caráter ilustrativo), uma explicação completa do tema científico (caráter explicativo), a representação de uma situação que envolva o conhecimento de termos científicos específicos (caráter motivador) ou a apresentação de um enredo que explicite em sua narrativa um desafio que deverá ser resolvido pelo leitor (caráter instigador). Em uma análise mais restrita, a História em Quadrinhos pode ser considerada como uma atividade lúdica, conseguindo, desta forma, associar em sua estrutura as características pedagógicas e potencialidades didáticas inerentes ao objeto lúdico, favoráveis ao processo de ensino/aprendizagem - o efeito catártico e o desafio provocados por sua utilização (RAMOS, 1990). O Quadrinho, devido ao seu sistema próprio de diagramação e formatação, apresenta peculiaridades psico-lingüísticas pouco exploradas pelos outros meios de comunicação de massa. Ao unirmos de forma coerente um sistema icônico (desenhos) com um sistema de textos, ambos isoladamente estáticos, consegue-se obter um sistema dinâmico (QUELLAGUYOT, 1994), no qual o leitor insere-se no enredo e no perfil das personagens, estabelecendo uma conexão positiva entre o indivíduo e o material lido, fator de fundamental importância para a utilização deste tipo de arte em um ambiente educacional. 122 Em uma vertente cognitivista, a História em Quadrinhos propicia em sua leitura o desenvolvimento de uma série de ações do sistema cognitivo – análise, interpretação, classificação, imaginação, entre outras. Por outro lado, tomando-se como base os Quadrinhos de caráter instigador, a proposição de um desafio no decorrer do enredo faz-nos remeter a uma proposta construtivista de ensino, na qual a colocação de uma situação-problema como fator desencadeador de uma discussão é fundamental. Tomando-se como base as justificativas teóricas supraexpostas, procuramos verificar neste trabalho a influência da utilização de uma História em Quadrinhos de caráter instigador no tratamento de um conceito científico específico (princípio da inércia), estabelecendo uma proposta de utilização destas histórias em sala de aula. De forma mais específica, buscamos constatar uma possível ocorrência de evolução conceitual do referido conceito por parte dos alunos, procurando relacioná-la com o uso da HQ. Para tanto, confeccionamos uma História em Quadrinhos de caráter instigador, na qual a 1a lei de Newton era abordada através da seguinte situação: uma personagem iria pular do trampolim que localizava-se no interior de um navio que deslocava-se a 180km/h. No último quadro da HQ era exposta a situação-problema – a personagem cairia dentro ou fora da piscina? Visando a uma melhor análise do processo, utilizamos questionários iniciais e pré-testes que buscavam delinear as concepções prévias dos alunos acerca da inércia, obtendo resultados já esperados de acordo com a literatura do ensino de física (GUIMARÃES, 1987). Os discentes consideravam a inércia como sendo uma força, estabelecendo uma relação de 1o grau entre um movimento qualquer e uma força resultante na direção do mesmo. A HQ confeccionada foi entregue aos alunos que, em grupo, discutiram a respeito da situação proposta pela narrativa. A discussão ocorreu, a princípio, entre os integrantes do próprio grupo, disseminando-se por toda a sala de aula de forma espontânea e sem interferência da professora aplicadora do projeto, que, inclusive, viu-se no papel de orientar as argumentações propostas pelos alunos, sem, no entanto, direcionar de forma direta a resposta correta. A naturalidade com o manuseio de uma HQ, a identificação com a mesma e o envolvimento das salas de aula com o desafio proposto puderam ser 123 facilmente constatados nas observações dos episódios de ensino e na análise das entrevistas finais, na qual o projeto obteve uma avaliação positiva por parte dos alunos. Em um primeiro momento, os alunos, devido a suas concepções prévias a respeito do tema – modelo F = k.v, já previsto por GUIMARÃES (1987) – inferiram de forma praticamente unânime que a personagem cairia fora da piscina, tal raciocínio foi explicado pelo fato da mesma perder contato com a superfície do navio, desaparecendo o fator causador de sua força horizontal e consequentemente, seu movimento nesta direção. Apesar de coerente com as idéias prévias dos discentes, o modelo proposto entra em contradição quando os próprios alunos recorrem a fatores cotidianos e fazem indagações do tipo: “Mas eu já vi filmes em que a pessoa pula do trampolim e ela cai dentro da piscina?!”, “Ninguém ia construir uma piscina no navio para a gente cair fora?” ou “Quem ia construir uma piscina para a gente morrer?”; ou seja, a previsão feita anteriormente não é condizente com a realidade. Segundo diversos autores da linha construtivista, POSNER et al (1982), CARVALHO (1998), ABIB(1996), entre outros, neste momento da discussão, a perturbação surgida gerará um conflito no sistema cognitivo do discente, até então estabilizado, sendo necessária uma profunda acomodação do mesmo para interpretar o novo fato. A procura de um novo modelo que possa resolver o conflito encontrado faz com que os docentes remetam-se de volta ao movimento do navio e passem a considerar a hipótese de que a personagem, mesmo após o salto, continue com o movimento horizontal da embarcação, caindo, desta forma, dentro da piscina. Salienta-se que o novo modelo surgido foi fruto de uma ampla discussão realizada de forma espontânea pelos alunos. A professora, de acordo com as observações dos episódios de ensino e análise das entrevistas, possuiu o papel de orientar e mediar os argumentos e discussões entre os discentes, procurando não fornecer a resposta correta ou direcionar de forma direta a construção do raciocínio dos alunos. A nova explicação, que tratava a inércia como uma característica do corpo em manter seu estado, foi encontrada também nas Histórias em Quadrinhos produzidas pelos próprios alunos após a discussão do tema. A 1 a 124 lei de Newton aparecia de forma bem-humorada, criativa e, principalmente, de forma coerente e contextualizada com o enredo, fatores que, em conjunto com as observações das discussões, consideramos indícios de uma compreensão correta do fenômeno, inferindo uma possível evolução conceitual. Os indícios desta evolução são fortalecidos pelos resultados do questionário final, em que, um anos depois, os alunos deveriam responder questões que envolviam situações iguais ou similares com as tratadas no projeto. As respostas obtidas constataram que, apesar do lapso temporal, a maioria maciça dos discentes continua enfocando a inércia como a tendência de um corpo em manter seu estado de movimento ou repouso. Considerando-se o quadro das concepções prévias obtido no questionário inicial, as observações e constatações feitas através dos episódios de ensino durante as discussões em sala, a análise do conteúdo das Histórias em Quadrinhos produzidas pelos alunos e das entrevistas, bem como o resultado obtido no questionário final, podemos estabelecer indícios de uma ocorrência de evolução conceitual do conceito de inércia pela maioria dos alunos. Salienta-se ainda a importância da utilização da História em Quadrinhos nesse processo, tendo em vista que este processo ocorreu em sua maioria durante a leitura e discussão que a HQ gerou em sala de aula. Vale salientar que a utilização das Histórias em Quadrinhos proposta por este trabalho visa à inserção desta forma acessível de arte como um instrumento auxiliar ao ensino de física. A HQ seria “a faísca de uma explosão”, um fator desencadeador de discussões a respeito de um tema proposto. Neste momento é muito importante a posição do professor em sala de aula, que deve estar convicto de seu papel de orientador/mediador dos debates gerados pelo Quadrinho, procurando não considerar sua prática como uma simples transmissão da resposta correta para posterior memorização do discente. A positividade desta proposta pôde ser verificada através do envolvimento dos alunos na leitura e discussão da HQ, e também por meio das entrevistas realizadas com os mesmos e com a docente , sendo que esta última, demonstrando os resultados positivos obtidos na pesquisa, aplicou, de forma espontânea, o projeto novamente no ano letivo subsequente, relatando ao pesquisador resultados semelhantes com os que constam neste trabalho. 125 A presente dissertação, por se tratar de uma pesquisa de cunho qualitativo e exploratório, procurou centrar seu foco nas fases do processo de evolução conceitual, procurando recolher indícios suficientes que buscassem sua comprovação e respectiva relação da utilização dos Quadrinhos com este fato. Investigações futuras podem sugerir a confecção de novas HQ com temas científicos diferentes do exposto, bem como uma ampliação do referencial teórico, objetivando, desta forma, verificar de forma ampliada a colaboração que esta forma de arte pode ceder ao ambiente educacional. As Histórias em Quadrinhos permeiam nossas vidas há mais tempo do que se imagina. Este trabalho visou a comprovar o quão positiva pode ser sua utilização no âmbito pedagógico, procurando, desta forma, fornecer mais uma contribuição para o ensino de física, divulgando um instrumento didático pouco utilizado na área de ciências, porém com um alcance muitas vezes esquecido. Afinal, quem nunca passou pela banca de jornal só para ver se já havia chegado o novo número da turma da Mônica, do Pato Donald, do Zé Carioca... "