Livro Publicado - Da curiosidade à elaboração de sentidos: Histórias em quadrinhos na formação inicial de professores de física
Livro Publicado
Da curiosidade à elaboração de sentidos: Histórias em quadrinhos na formação inicial de professores de física
Edimara Fernandes Vieira
Prefácio:
"Comecei a me debruçar verdadeiramente sobre a relação das histórias em quadrinhos com a educação a partir de 2003, quando propus e logo em seguida comecei a ministrar uma disciplina de pós-graduação sobre o tema no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Já me interessava pelos quadrinhos desde criança e havia desenvolvido minha dissertação de mestrado sobre o tema na mesma escola, mas nunca havia refletido seriamente sobre seu impacto no ambiente educacional. Sabia apenas que havia, para utilizar uma palavra mais suave, um tipo de estranhamento em relação aos quadrinhos nesse ambiente, estranhamento esse que eu mesmo havia vivenciado em minha infância e adolescência. Jamais imaginei que aquela disciplina iria gerar um envolvimento permanente de minha parte com essa temática, que já dura vinte anos. Aquela pouco pretensiosa disciplina de pós-graduação foi responsável por uma guinada em minha atuação no campo das histórias em quadrinhos e levou-me a coordenar pesquisas, a organizar livros teóricos, a elaborar artigos nacionais e internacionais, a auxiliar na elaboração de obras didáticas em quadrinhos, a ministrar dezenas de cursos, conferências e palestras em escolas e universidades do Brasil inteiro, a orientar pesquisas de conclusão de curso, mestrado e doutorado, a participar de mais de uma centena de bancas acadêmicas de avaliação de pesquisas sobre esse tema. Não tive mérito algum nisso. Nem sequer me havia dado conta, naquela altura, que era chegado o momento de as histórias em quadrinhos quebrarem grande parte das barreiras que as afastavam da educação. De fato, os últimos vinte anos presenciaram, no Brasil e no mundo, um crescente e cada vez mais complexo envolvimento das histórias em quadrinhos com as questões da educação em todos os níveis de ensino, em todas as modalidades. Se antes os quadrinhos haviam sido
utilizados para educação popular e campanhas governamentais em vários países, adentrando algumas vezes, ainda que de forma tímida, esporádica e quase envergonhada, os ambientes educacionais formais, as últimas duas décadas os levaram verdadeiramente a uma inserção (ou imersão?) total no ensino. Nunca, até então, eles haviam sido objeto de tanta atenção por docentes, alunos, autoridades de ensino, pais, trabalhadores. Tudo isso, é claro, não ocorreu por acaso. Acompanhou um movimento de valorização cultural e artística das histórias em quadrinhos, que ascenderam a diversos patamares que antes não haviam conseguido atingir. Inclusive, passaram a ocupar espaço cada vez mais proeminente na Academia, constituindo um campo científico que hoje reúne centenas de pesquisadores no mundo inteiro — o dos Estudos de Quadrinhos (Comics Studies). É dentro desse movimento que quero situar e fazer minha apreciação sobre o livro de Edimara Fernandes Vieira, objeto deste prefácio. Começo pela
autora: Edimara pertence a uma geração recente de acadêmicos interessados por quadrinhos, uma geração que desenvolveu seu envolvimento científico com os produtos da 9a Arte sem encontrar o mesmo tipo de resistência que gerações anteriores tiveram que enfrentar. Assim, ao demonstrar seu interesse por desenvolver uma pesquisa relacionada com o papel das histórias em quadrinhos na formação inicial de professores de Física, no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo, ela não encontrou mais o mesmo nível de resistência que alunos mais antigos encontraram. Ela teve, inclusive, a possibilidade — impensável uma ou duas décadas antes — de encontrar a professora doutora Maria Lucia Vital dos Santos Abib, que se mostrou simpática ao tema e, além de aceitar orientá-la no desenvolvimento da pesquisa, possibilitou que a disciplina pela qual é responsável, Metodologia de Ensino de Física 1 (MEF1), da grade curricular do curso de licenciatura em Física da Universidade de São Paulo (USP) e organizada pela Faculdade de Educação (FE-USP), fosse estabelecida como o contexto onde a pesquisa foi realizada. É bom quando os fatores propícios se juntam dessa maneira, aplainando os caminhos da investigação científica para uma aluna visionária, motivada, talentosa e sonhadora. O resultado, como se pode comprovar por esta obra, em geral, é positivo. Acredito que esse ambiente favorável contribuiu bastante para que o trabalho de Edimara fluísse e apresentasse um resultado coerente e bastante meritório, como os leitores desta obra comprovarão ao mergulhar em sua leitura. As definições metodológicas adotadas se mostraram bastante felizes, da mesma forma como correta se mostrou a bibliografia adotada. Especialmente rica me pareceu a leitura e o diálogo estabelecido pela autora com a obra de Paulo Freire, apresentada nos capítulos iniciais do livro, que representam grande parte do sustentáculo teórico do trabalho. A partir de
Freire, ela discute e estabelece como conceitos-chave para sua pesquisa os de massificação do ensino, curiosidade ingênua versus curiosidade epistemológica, bem como a busca de práticas transformadoras no ensino, espaço no qual pode ser colocada a discussão sobre as histórias em quadrinhos. Outro autor que Edimara, a meu ver, também de maneira bem adequada, utiliza na construção de seu arcabouço analítico é Lev Vigotski, cuja teoria histórico-cultural constitui um suporte conceitual bastante efetivo, especialmente para compreensão dos sentidos que os alunos da disciplina Metodologia de Ensino de Física 1 atribuem para as histórias em quadrinhos. A discussão específica sobre histórias em quadrinhos, com suas características e gêneros, é realizada pela autora no capítulo três, quando enfoca a 9a Arte como “produto cultural, artístico-midiático e educacional”, possibilitando aos futuros leitores maior familiaridade com esse objeto de estudo. Especialmente instigante é o aprofundamento sobre as histórias e quadrinhos no ensino de Física, no qual é apresentado o desenvolvimento dessa temática no Brasil, destacando inicialmente a evolução histórica do interesse pelo assunto e culminando com a discussão a respeito das pesquisas realizadas na área, quando identifica as principais motivações dos pesquisadores e, a partir delas, define sua própria trajetória de pesquisa. A partir das diversas abordagens ao ensino de Física com a utilização de histórias em quadrinhos, encontradas na literatura científica, Edimara opta por um enfoque particular: identificar e discutir os sentidos que os aprendentes da docência em Física tecem para as histórias em quadrinhos direcionadas ao ensino em disciplinas de Metodologia de Ensino de Física. Trata-se de uma abordagem inovadora à discussão sobre quadrinhos e educação em campos do conhecimento específicos. Ela é realizada com bastante felicidade por Edimara, com um nível de aprofundamento e rigor científico que, a meu ver, ultrapassa mesmo o mestrado, grau acadêmico que ela obteve com sua pesquisa. Tendo como instrumento de pesquisa a observação participante e utilizando técnicas de coleta de dados como o questionário, a entrevista e o registro em áudio e vídeo das diversas interações com os participantes da disciplina Metodologia de Ensino de Física 1, a autora conseguiu trilhar uma trajetória científica bastante produtiva, foi refinada pela identificação do que eu definiria como dois sujeitos “privilegiados” da pesquisa — que se transformaram em seu estudo de caso —, constituindo-se no que é comumente denominado na área acadêmica como informantes-chave. Esses dois aprendentes da disciplina, identificados no texto como Rick e Tails, foram objeto de mais aprofundados questionamentos, inquirições e discussões com a autora, visando à melhor compreensão de seu relacionamento com as histórias em quadrinhos em sua prática educacional. Nesse sentido, os capítulos que são dedicados ao detalhamento, discussão e resultados desta pesquisa constituem, a meu ver, a parte mais fascinante do livro, pois permitem perceber como, aos poucos, o relacionamento dos dois aprendentes com as histórias em quadrinhos e o potencial de utilização delas no ensino foi passando — mais em um, um pouco menos em outro, em minha opinião — de uma visão permeada por premissas massificadoras do ensino para uma que destaca a dialogicidade como dimensão de desenvolvimento humano e enxerga o professor como um produtor crítico e criativo de conhecimentos. Assim, pode-se dizer que o diálogo com as histórias em quadrinhos no ambiente de aprendizagem lhes permitiu evoluir da curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica, indo ao encontro — e pode-se até dizer: validando mesmo — do ponto de vista defendido por Paulo Freire em sua obra. Muito mais haveria a destacar sobre as contribuições científicas da pesquisa de Edimara Fernandes Vieira apresentadas neste livro, mas não o faço para não dar — como dizemos na área de quadrinhos — um spoiler ao leitor e lhe tirar o gosto de encontrar por si mesmo cada um desses aportes. Não tenho dúvida de que esta experiência de leitura irá constituir um percurso ao mesmo tempo prazeroso e esclarecedor, que o levará a compreender melhor tanto as demandas do ensino — e não apenas do ensino de Física — como as possibilidades que se abrem quando a ele se agrega um produto cultural como as histórias em quadrinhos. E, como eu, irá concluir que existe um mundo de possibilidades à sua frente. Mas que é preciso ousar. Como fez Edimara."
Prof. Dr. Waldomiro Vergueiro
Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP
Prefácio 2
No contexto atual em que vivemos, estamos assistindo ao desenrolar de uma série impressionante de mudanças sociais e culturais que imprimem novas formas de comportamentos e necessidades. Tal movimento tem gerado uma crise de valores e uma avalanche de problemas para os quais precisamos encontrar caminhos e soluções originais. Nesse cenário, as novas tecnologias digitais e a profusão de mídias e linguagens que trazem novas possibilidades de acesso a informações e de comunicação impactam de maneira inusitada as salas de aula, os modos convencionais de ensino e as possibilidades de aprendizagem dos estudantes. Não há como negar mais que precisamos promover transformações profundas e abrangentes no ensino e na formação de professores, em especial, nos cursos e programas
formativos que os capacitam para uma atuação neste novo tempo. A obra aqui apresentada é uma grande fonte de inspiração para os que comungam dessas preocupações. Está sedimentada sob a tríade Educação- Ciência-Arte e vai em busca de responder a um conjunto de indagações associadas à integração de novas linguagens com o ensino de Física por meio de um trabalho que se alicerça fundamentalmente na formação de professores. A paixão da autora pelas histórias em quadrinhos foi o que impulsionou a construção deste trabalho que congrega novos instrumentos culturais para o ensino de Física e novas possibilidades para o trabalho docente voltado à educação científica. O caminho dessa construção fundamentada tanto na sua experiência docente como em suas primeiras formações na iniciação científica tomou corpo com os estudos na pós-graduação e nas monitorias realizadas nas disciplinas de metodologia do ensino de Física, especialmente nos estágios realizados pelos futuros professores, promovendo um mergulho teórico-metodológico necessário à elaboração da sua dissertação de mestrado, que originou este livro.
Nesse percurso, a complexificação das compreensões sobre os processos educativos foi se tornando possível graças às vivências no duplo papel de pesquisadora e formadora de professores acrescidas das apropriações teóricas no campo da formação de professores que promoveram o entrelaçamento da arte, por meio da linguagem, com a didática da Física. Visto de outro ângulo, a defesa de ciência como cultura. O elemento motriz principal desse processo, sem dúvida, aliada à sua paixão, foi a curiosidade
da pesquisadora. Suas experiências muito bem-sucedidas na utilização das HQs com seus alunos da escola básica fomentaram a germinação de questões que foram desencadeadoras da investigação apresentada nesta obra. Perguntava-se: de que forma levar a utilização das HQs para outras aulas
de Física? Até que ponto outros colegas, professores e professoras, podem adotar as várias maneiras de sua utilização no ensino dados diferentes contextos de sala de aula? A narrativa do processo que essas questões sustentaram revela, ainda que implicitamente, o percurso trilhado marcado pela transformação da curiosidade inicial da pesquisadora — dadas as novas exigências de pesquisadora-formadora — para o patamar de curiosidade epistemológica em que novas apropriações teóricas e metodológicas no campo da pesquisa e educação e na formação de professores são fundamentais. Dessa forma, a educação e a formação de professores e a cultura científica das áreas envolvidas passaram a compor o cenário da obra, com escolhas teóricas compatíveis com uma perspectiva crítica, emancipatória e criativa a um só tempo para os processos investigativos e para os processos formativos, fortemente alicerçadas nos trabalhos de Paulo Freire e Vigotski. E assim o trabalho foi sendo estruturado de forma a revelar o rigor acadêmico necessário à natureza desta obra original. Seus conceitos de base teórica, o contexto da investigação e a apresentação detalhada e cuidadosamente desenhada dos procedimentos metodológicos da investigação desenvolvida dão plena sustentação e consistência às conclusões fundamentais que revelam um potencial promissor para a utilização das histórias em quadrinhos pelos professores. A beleza, o rigor e a originalidade deste trabalho se constituem em fonte de aprendizagem aos que querem superar as barreiras de um ensino de Física e de processos de formação de professores que ainda possam se apresentar desconectados das necessidades das novas gerações.
Prof.a Dr.a
Maria Lucia Vital do Santos Abib
Laboratório de Pesquisa e Ensino de Física da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (LaPEF)
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